domingo, 24 de fevereiro de 2013

Django e a era adulta de Tarantino

COLUNA [Novo Cinema Velho]


Poster de Django Livre, novo filme de Quentin Tarantino.


Por Daniel Mendes

Para cinéfilos e críticos que acompanham a carreira do diretor norte-americano Quentin Tarantino, 49, desde a sua película inaugural Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992), o seu mais recente lançamento Django Livre (Django Unchained, 2012), soa deliciosamente mais adulto. 20 anos separam as duas produções. Tempo suficiente para Tarantino avançar e atingir um nível de criatividade ainda mais admirado e invejado. O grande recheio que agora permeia seus filmes começou a ser degustado já em Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, 2009). Trata-se de um teor crítico pouco acentuado em seus filmes anteriores, acusados pela crítica mais severa de serem unicamente violentos. Outros críticos elogiavam alguns aspectos como a montagem, a trilha e os diálogos dos personagens, mas em relação ao conteúdo estes também "torciam o bico"...

Certa vez perguntei a um veterano crítico de cinema sua opinião sobre o diretor Quentin Tarantino. Depois de muitos segundos de silêncio... Respondeu: “Nota-se nele certo talento para diálogos.” E foi só. A opinião dele é comum a de muitos outros, sobretudo, aqueles que "morreram" na década de 60, mas que continuam exercendo a função de críticos... Esse pensamento simplista sobre a obra cinematográfica de Tarantino pode explicar o fato de o diretor, mesmo tendo conquistado muitos admiradores por todo o planeta, nunca ter vencido o Oscar. E pode explicar ainda, o absurdo de seu nome não está entre os concorrentes ao prêmio de melhor diretor na cerimônia de logo mais em Hollywood. O maior feito dele continua sendo a conquista da Palma de Ouro em 1994, no Festival de Cannes, com sua segunda película, Pulp Fiction.

Christoph Waltz e Jamie Foxx em cena de Django Livre.


Acredito que independente de um dia ganhar o Oscar ou não, Tarantino vem a cada novo filme apresentando uma evolução em termos técnicos e narrativos. Isso pode ser evidenciado em seus dois últimos longas-metragens, se compararmos a montagem e a fotografia, por exemplo, com seus filmes anteriores. Voltando a comparar Django Livre com o seu primeiro filme, Cães de Aluguel, nota-se uma evolução nas cenas de tiros e na chuva de sangue que antes só faltava jorrar na plateia. A edição das cenas e do som está cada vez mais precisa. Mas o que chama a atenção mesmo é a evolução no quesito conteúdo. Não que suas produções anteriores fossem fúteis, longe disso, mas a maturidade nas abordagens dos temas, principalmente os polêmicos, é notável. Seus filmes estão mais críticos e não estão menos criativos que os anteriores.

É importante ressaltar que para realizar uma homenagem no cinema demanda muito talento dos seus realizadores para não cair no clichê da mera bajulação. Django Livre é mais do que uma homenagem ao gênero de filmes italianos rotulados pelos norte-americanos como Western Spaghetti, numa tentativa de diminuir a versão italiana de seus faroestes. O filme de Tarantino vai também além do Django original, lançado em 1966, pelo diretor Sérgio Corbucci. E vai muito além ainda de outras homenagens já feitas por Tarantino, como em Pulp Fiction (quando homenageia os gibis, Pulp, bastante popular nos Estados Unidos no período entre guerras), em Kill Bill, 2003-2004 (homenagem aos filmes japoneses de ninjas), e em A Prova de Morte (Death Proof, 2007), filme no qual homenageia as produções B do cinema independente norte-americano. Django está livre de qualquer prisão que uma homenagem pode ocasionar. O filme é a sede de vingança do seu diretor em sua fase mais elevada. Ele soube ainda com muita ousadia realizar um filme bastante forte, como já é característico de suas produções, mas agora apresentando uma crítica segura e um sarcasmo impecável.

Jamie Foxx e Leonardo DiCaprio.


Não posso deixar de comentar as atuações brilhantes de quase todo o elenco. Jamie Foxx se mostra bastante a vontade no papel principal. Muito seguro, ele cria um Django durão, porém, sensível. Se sai bem tanto nas cenas de humor, como nas cenas de ação e drama. Leonardo DiCaprio é a grande surpresa do filme. Ele provou que não é apenas um rostinho bonito de Hollywood e que Jack Dawson morreu mesmo no naufrágio do Titanic. DiCaprio encarna um terrível fazendeiro com os maiores requintes de crueldades. Outra grande atuação é a de Samuel L. Jackson. Ele está horripilante e detestável no papel de um velho ex-escravo e racista. Transmite a todo o momento uma antipatia abominável ao seu personagem. Uma atuação extraordinária.

Samuel L. Jackson


Agora é mesmo Christoph Waltz quem rouba a cena nesse filme. Ele está impecável no papel de um caçador de recompensas. Devido a sua bela atuação, Waltz é um dos favoritos ao Oscar de melhor ator coadjuvante em 2013. Sua eficaz interpretação transita entre o homem frio e calculista que mata por dinheiro e um ser humano capaz de se sensibilizar com o amor de um ex-escravo por uma escrava e o seu drama de resgatá-la em um dos períodos mais racistas da história norte-americana. 

O filme reporta ao ano de 1858, um pouco antes da Guerra de Secessão (1861-1865), guerra civil que dividiu os Estados Unidos entre os estados do norte, contrários a escravidão, e os do sul, a favor. Django se passa no sul, ou seja, nas terras onde a mentalidade das pessoas ainda era bastante escravista.

Christoph Waltz


Mesmo Tarantino gozando já de certo prestígio em Hollywood, as possibilidades de Django Livre sair vencedor na cerimonia de hoje do Oscar são mínimas. Além do mais, mesmo com muitos fãs, o diretor ainda está longe de ser uma unanimidade no mundo do cinema. O próprio Django recebeu muitas críticas negativas. A mais famosa delas foi feita pelo também diretor norte-americano, Spike Lee (Faça a Coisa Certa, Febre da Selva), que recentemente esteve filmando um documentário no carnaval de Salvador. Ele acusou o filme de racista. Opiniões à parte, acredito que ele não tenha entendido muito bem a proposta de Tarantino, inclusive, há rumores que o diretor de Mais e Melhores Blues, 1990, não tenha nem se quer assistido ao filme. Sua crítica teria se baseado em boatos que ouviu sobre Django Livre.

O fato é que não apenas Spike Lee deve ter interpretado mal Quentin Tarantino. Todos aqueles que assistiram a Django Livre cheios de pudor com relação ao tema e presos a história oficial devem ter estranhado este filme. Isso porque a proposta de Tarantino é justamente o contrário. Desde 2009, quando assassinou Hitler queimado numa sala de cinema, ele faz uma revisão crítica e irônica da história. Da mesma forma que uma judia se vingou dos nazistas em Bastardos Inglórios, agora ele põe um negro ex-escravo para se vingar dos brancos algozes. A ironia histórica é tão evidente que a cena em que fazendeiros e seus capangas se vestem com capuz branco nos rostos para matar Django chega a ser estupidamente cômica. Trata-se de uma alusão clara a Ku Klux Klan (organização racista que pregava a supremacia branca e assassinava negros no sul dos Estados Unidos, sobretudo, nos estados do Texas e do Mississipi). "Quem teve a ideia imbecil de por um saco na cara para matar?" É o que Tarantino satiriza na cena.

Com Django Livre, Quentin Tarantino dá um tiro suave e estrondoso na cara dos seus críticos mais fervorosos. É como um insulto educado. Uma surra dada sob controle, sem perder a linha, dada por um cara que bateu bastante para aprender a bater, e que matou muito para aprender a matar. Um criador que desconstruiu o suficiente suas narrativas apenas para continuar à frente do seu tempo, da maneira mais simples que se pode ser espetacular.  Django é sangue, mas é humor. É crítica, mas é ironia. É ação, mas é drama. É experimental, mas é direto. É "forte" demais para o Oscar, mas é a concretização de Quentin Tarantino como o maior cineasta de sua geração.

Quentin Tarantino


Daniel Mendes é jornalista e crítico cultural. Escreve também para os blogs: Mais Caribe e Cultura Para Desocupados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário